2006/04/14

ÊXTASE


No princípio foi a noite, o apelo da carne, o frémito, a embriaguez dos sentidos e da vontade.

No princípio foi a carícia fácil, luxuriosa, lívida e, no entanto, falsa, sem sentido, objectivo ou conteúdo.

No princípio foi o grito, o corpo, o sangue a ferver, a alienação da vontade, a frase solta, dita e não sentida.

No fim foi um Sol a nascer acinzentado, o tédio, o desencanto, o amargo de boca, o vazio, o negro e o silêncio.


No fim, a manhã foi uma realidade muito fria, marcada como culpa, cravada como nódoa e incómoda como a dor que se instalou no fundo anestesiado do meu ser.


Lisboa, 10 de Setembro de 1983
Eduardo Ramos de Morais

O GOLFINHO


Aquela manhã de Agosto de 1956, tinha nascido cinzenta e fria, como se o Inverno escolhesse aquele dia para visitar o Verão.

A Trafaria era nesses tempos uma praia de águas calmas e areias douradas, mais um daqueles Paraísos que o Homem se encarregou de perder. (desde sempre somos especialistas em perder paraísos).

No meio de todo aquele cinzento recortava-se o azul celeste da camisinha da criança que brincava à beira mar.

Trazia o mundo num pequeno balde e a vontade de o mover na pá que segurava na mão direita.

Perto da margem, num interminável bailado aquático, evoluía uma dezena de golfinhos, livres como o mar, felizes como o Céu.

De súbito o menino deu por eles e ficou parado a contemplar aqueles seres, para si enormes e maravilhosos tão parecidos com os peixes.
Então, um dos cetáceos aproximou-se mais da praia para ver mais de perto a criança que o chamava.

Naquela linguagem que só as crianças e os golfinhos entendem, naquela voz que está para além da palavra, o menino perguntou:

- Que peixe és tu ?

Pacientemente o golfinho explicou:

- Eu não sou peixe, respiro como tu, nasço como tu e, nos primeiros tempos de vida, alimentei-me como tu do leite da minha mãe.

Há muitos milhões de anos que a minha espécie regressou ao mar, o preço nem sequer foi elevado, perdemos a possibilidade de usar utensílios ou escrever a nossa história, em troca da liberdade de viver nestes infinitos azuis e de comunicar para além do som.

Não conhecemos as guerras porque o mar não tem fronteiras, nem cidades e muito menos casas.

Os caminhos marítimos para qualquer lugar não têm segredos para nós, estamos em harmonia com o todo universal e viver é, por si só, uma oração ao Céu.

Maravilhada a criança olhou para aqueles olhos doces que o fitavam e exclamou:

- Quando crescer quero ser golfinho !

Carinhosamente o golfinho retorquiu:

- Tu não poderás ser golfinho porque nasceste homem, mas poderás treinar o teu coração e a tua mente para seres puro e pacífico como nós, para conheceres a imensidão do firmamento e a profundidade dos oceanos.

Subitamente o golfinho afastou-se da margem, juntou-se aos seus e debandaram apressadamente.

Ao longe, alguém chamava a criança para aquele dia de sol que entretanto tinha despontado.

Hoje já não há golfinhos no Tejo, a praia da minha infância deu lugar a um imenso colosso de betão, as águas, antes azuis, apresentam agora a cor baça da poluição.

Sonho ou realidade aquele diálogo com o golfinho prevaleceu na mente daquele menino que hoje, no Outono da vida, continua a ficar extasiado com a imensidão do mar e, não poucas vezes, dá por si a viajar no coração do golfinho, aquele golfinho que ficou para sempre gravado nos caminhos da minha memória.


Abrantes, 22 de Fevereiro de 2001
Eduardo Ramos de Morais

LANÇA FELIZ


Ela pertencera a uma das muitas florestas que existiram neste planeta e que num futuro próximo, serão apenas uma recordação fotográfica, se persistirmos em queimar o futuro.
Era uma daquelas árvores de grande porte, com séculos de existência, erguera-se em direcção a um Céu inatingível, ganhara raízes profundas e resistira a todos os caprichos da Natureza, como se ali sempre tivesse estado e ali fosse permanecer para sempre.
Mas um dia vieram buscá-la. Os machados, golpe a golpe foram minando a sua base até que o colosso se desmoronou no solo, separado das raízes e da terra onde crescera.
Nessa altura pensou que era o fim de tudo mas, curiosamente, apercebeu-se que algo de novo ia começar.
Sentiu que a separavam em peças de diversas formas e tamanhos e, no meio de clarões de dor, o voltavam a reunir segundo um projecto bem delineado.
Como num “puzzle” gigantesco, a árvore deu lugar a uma daquelas graciosas embarcações que até meados do século passado, deram vida ao Tejo com as suas pinturas vistosas e as suas velas enfunadas, as fragatas.
Quando ficou finalmente acabada, alguém escreveu nos dois lados da proa o nome:
“LANÇA FELIZ”
Assim foi baptizada aquela fragata:
LANÇA, para que navegasse rapidamente e com bons ventos.
FELIZ, para que as suas viagens chegassem sempre a bom porto.
Depois desceu o rio rumo ao estuário onde, a partir desse momento, se iria desenrolar o próximo estádio da sua vida.
Desceu o rio deixando para traz a floresta, aquela floresta onde vivera à beira do seu mar interior.
Desceu o rio relembrando com saudade o ruído dos regatos, o chilrear das Primaveras em que cada nascer do Sol, era uma explosão de vida e cor.
Desceu o rio com o vento nas velas, a lembrar o tempo em que o sussurro da brisa lhe agitava os ramos.
Então percebeu a sua imagem reflectida nas águas e orgulhou-se da bela embarcação em que se tinha transformado, livre, sem raízes, veloz e firme como uma Lança, Feliz como o amor e a liberdade.
Ao longo de décadas, muitas foram as suas viagens. Aprendeu o rio, conheceu o mar, as ânsias das partidas e as saudades dos regressos.
O sal do mar e o azul do Céu já faziam parte de si, as gaivotas seguiam-na sorrindo voos à volta das suas velas.
O tempo passou e, de novo, alguma coisa estava a mudar, o Tejo estava mais poluído, os navios eram outros, cada vez se viam menos velas a sulcar as ondas, cada vez eram menos as fragatas com que se cruzava.
De resto, a maioria dos dias eram passados sem sair da doca e já há muito que não lhe retocavam a pintura, nem lhe cuidavam das velas.
Os sinais do tempo começaram a notar-se, já não era a bela embarcação de outras eras e, o pior de tudo, era a solidão que vinha tornar mais amarga, aquela sensação de estar a envelhecer.
Agora estava a navegar de novo e conhecia aquela rota, lembrava-se, fora a sua primeira viagem. Mas agora subia o rio, contra a corrente que a puxava para o mar, para aquele mar azul que na sua memória, ia perdendo a forma e os contornos, para aquele mar azul que se ia esfumando, até ser apenas uma mancha matizada de cinzento.
Subia o rio rumo à sua floresta e ao seu mar interior, mas sabia que jamais voltaria a ter raízes e nunca mais voltaria a ser árvore.
Finalmente a viagem terminou, deixaram-na encalhada na margem, junto a um salgueiro, só, entregue a si própria, à mercê do tempo e à espera do fim.
Já não barco, nunca mais árvore, as suas cavernas partiram-se e as velas já tinham desaparecido em farrapos. Pouco restava da “Lança Feliz”, outrora uma das mais lindas fragatas do Tejo.
Anos volvidos, uma criança brinca numa praia junto à foz do rio. Achou um bocado de madeira carcomida pelo tempo, com o seu canivete dá-lhe uma forma que lembra vagamente um barco, ao centro crava-lhe um pau, como se fosse um mastro, prende-lhe o seu lenço dobrado em triângulo.
E tudo começa de novo, na sua imaginação de criança há mil viagens, mil partidas, mil chegadas, a luz do Sol e o azul do mar e a aventura de poder sonhar.
Enquanto empurra aquele pedaço de madeira pela água calma da beira-mar, imagina um barco de verdade, veloz como o pensamento, belo como a liberdade e dá-lhe um nome
“LANÇA FELIZ”


Abrantes, 14 de Novembro de 2000
Eduardo Ramos de Morais

O MEU BARCO

Quem passe hoje pela Trafaria não consegue vislumbrar a praia maravilhosa que aqui existiu.

È comparável com algumas senhoras octogenárias, em que apercebemos remotos traços de uma beleza impar que o tempo e a vida foram corroendo.

Não era raro, contemplarmos a evolução dos golfinhos que visitavam o Tejo em busca de um azul que agora não existe.

Era neste areal outrora limpo que vinha passar a época estival, banhando-me em águas onde a poluição ainda nem sequer era conhecida, aprendendo em cada pôr do Sol o milagre de existir.

Por vezes sinto que este local se limitou a envelhecer comigo e, um dia se apagará quando a minha memória se extinguir, tantos são os momentos a que a estes lugares estão ligados.

Aquele Verão de 1957, por exemplo, foi um Verão formidável:

O meu pai tinha-me comprado um barco, um barco a sério que embora precisasse de cuidados urgentes de calafetagem e pintura para ser posto a navegar, foi dos melhores presentes que recebi.

Estava plantado na areia longe da água, mas isso não impedia a minha imaginação de o fazer navegar e enfrentar as marés dos meus sonhos.

Ao longo daquelas férias passei horas a fio a remar em seco, remadas que iam abrindo covas na areia de cada lado do meu barco, levando-o célere através dos oceanos infinitos do meu cérebro de criança.
Por vezes punha-me de pé na popa do meu barco, dando-me ares de lobo do mar e de comandante de um grande navio.

- Para o ano que vem , vamos mandar arranjar o teu barco e vamos pô-lo de novo na água – prometia o meu pai, fazendo-me desejar que “o ano que vem” fosse logo amanhã e que o minha imaginação projectasse ainda mais viagens numa espiral de sonho e de fantástico.

Mas, como cantava o meu avô: “na dor contam-se os segundos, no prazer esquecem-se as horas”, aquele Verão de 1957 passou muito depressa e aqueles três meses de enlevo e felicidade estavam a chegar ao fim.

Nem tudo foram rosas porque, cioso da posse e do comando do meu barco, muitos tinham sido os “clandestinos” da minha idade que eu tinha atirado pela borda fora, esgotando a paciência da minha mãe.

Era escusado, então não era eu o capitão do navio ? Não tinha a liberdade de escolher quem podia navegar comigo no meu barco ?

Cansada de tantos e variados conflitos, a minha mãe sem que eu soubesse, deu ordem ao banheiro para desmantelar e queimar o meu barco quando as férias chegassem ao fim.

Assim, na última semana daquelas férias, o meu barco desapareceu da praia e eu fiquei convencido que o tinham levado para arranjar, conforme o meu pai me tinha prometido.

Num dos últimos dias desse Verão, ao sairmos da praia, reparei numa fogueira que ardia em labaredas por traz do balneário da praia e, com a minha perspicácia de criança, pareceu-me reconhecer algumas tábuas do meu barco.

Realmente, no ano seguinte o meu barco não estava lá, as lágrimas rolaram-me pela face, o meu barco nunca mais iria ao mar, agora era apenas um sonho feito em cinzas e, pela primeira vez, o meu pai ia faltar ao prometido.

Há dias completei meio século de existência, das mãos do meu velho pai recebi uma das mais gratas prendas de toda a minha vida:

Numa bonita moldura, uma velha fotografia a preto e branco mostrando a criança que fui, de pé na popa do meu barco.

Quarenta e cinco anos depois finalmente a promessa estava cumprida, calafetado com a força do amor e pintado com as cores do sonho, o meu barco estava de novo a navegar rumo a infinitos de azul e de violeta.


Abrantes, 25 de Maio de 2002
Eduardo Ramos de Morais

DE QUANDO EM VEZ


De quando em vez , bates à porta da minha imaginação e entras, como fumo branco, a preencher todos os cantos, invades os neurónios e ficas a olhar, profunda e reprovadoramente, com a dureza a transparecer desse sorriso amargo que não é mais do que uma recordação de despedida.
De quando em vez, vens apagar os meus sonhos e projectos e deixas lágrimas a povoar os meus sorrisos, sinto então quanto é falsa essa felicidade de plástico que teimo em construir, no alto de colinas de nuvens.
De quando em vez, sinto profundamente o peso dos impossíveis, no entanto, vives um pouco aqui, como se eu fosse casa e recusas-te a sair, como se fizesses parte das traves do meu cérebro.
De quando em vez, a recordação do som da tua voz, do teu olhar, do calor das tuas mãos e a textura do teu corpo, como um banho de mar num dia quente.
De quando em vez, o descobrir não seres os braços que me abraçam, os lábios que me beijam, as mãos que me percorrem e o procurar que não encontro.
De quando em vez, o desespero, o tédio e a angustia de não conseguir pensar senão em ti nem fugir do sonho que povoas. Então percorro a noite num sonambulismo louco, dentro do pesadelo e a miragem desfaz-se, grito, imploro e, pateticamente, pergunto para mim um porquê, sofrido e mudo, a fogo gravado no meu ser mais profundo.
De quando em vez, sei que te amo, mas não quero, sei que te quero sem querer.
De quando em vez, há alguém que me faz sentir que vivo, alguém me dá algum valor ou, direi antes, amor ?
De quando em vez, há alguém que me faz ver o que perdi, na percepção do que nunca mais terei.
De quando em vez, se tu soubesses, como te amo e odeio, como te adoro, te tenho raiva e detesto no carinho que sinto e te não dou, no amor que me extravasa e tu não queres.
De quando em vez, sinto vontade de morrer, mas afivelo a máscara, congelo os sentimentos e dou um pouco de mim, espalhado ao vento, feito saldo e desbarato a quem quiser assistir à liquidação total das minhas linhas mestras.
De quando em vez, teimo em viver, ser duro e forte como uma rocha e imagino que, se um dia me vieres a encontrar, verás a felicidade a vestir um infeliz e o meu coração terá um “iceberg” a rodear o fogo que o envolve.

Lisboa, 07 de Outubro de 1983
Eduardo Ramos de Morais

A MINHA GAIVOTA


Toda a minha infância e juventude tiveram o estuário do Tejo como cenário, vivi numa colina de Lisboa, de onde abarcava todo o seu esplendor e passei largas temporadas de Verão junto à sua foz.

Muitas águas correram por aqui vindas de longe, buscando o mar e o infinito branco das nuvens, para voltarem aqui, onde obrigatoriamente tenho de voltar para me encontrar com este Tejo em que me transbordo e desaguo nos sonhos que teimo em navegar.

Aqui comecei tantas viagens nos navios que via sair barra fora, para regressar ao pôr-do-sol no voo tranquilo da gaivota, aquela gaivota que sempre me acompanhou obsessivamente ao longo da vida, como símbolo de pureza, mistério, amor e liberdade.

Foi aqui que a conheci, posso dizer que era a minha gaivota, minha sem ter a sua posse, minha porque sempre tive a pretensão de ser o único a compreender o seu voo, quando, ao pôr-do-sol, se recortava no azul do infinito e de manhã me trazia pinceladas de laranja em fundos esfumados de brancos anilados de violeta.

Hoje, o estuário do Tejo parece ter envelhecido comigo, ainda lhe restam a beleza e o vigor, mas notam-se já os sintomas da doença que, um dia num futuro previsível o acabará por matar.

Ainda por aqui evoluem gaivotas, mas nenhuma se parece com a minha. A minha gaivota era branca e pura, voava com a leveza do pensamento e com a liberdade do amor.

Hoje, volvido meio século, continuo à beira do Tejo, estou mais longe do mar, mais perto de mim, mais puro como este Tejo que corre sem pressas perto da cidade de Abrantes.

Posso dizer que por aqui estou de regresso às origens, de regresso a mim mesmo ou de regresso à inocência, porque aqui existe um mar interior em que me banho e purifico.

Há por aqui lugares cuja atmosfera nos faz sentir mais perto de nós próprios e mais perto do céu, verdadeiros templos de Natureza onde os azuis se confundem em cinzentos, os amarelos se esfumam de branco e fica ao nosso critério decidir o que é real e onde começa o limiar do sonho.

Lugares como Dornes, terra de Templários que aqui deixaram os seus vestígios e a sua mística e onde, tantos anos passados, voltei a encontrar a minha gaivota.

Tentava descobrir no horizonte, onde acabava o verde das árvores e o azul do céu e onde começavam as suas imagens reflectidas (em Dornes a ilusão funde-se com a realidade) quando de repente, recortada neste cenário me apercebo da sua silhueta inconfundível de gaivota.

À medida que se ia aproximando fui reconhecendo o seu voo, livre como o amor, leve como o pensamento, era sem dúvida a minha gaivota, aquela que tantas vezes me levou a voar no seu coração.

Apercebiam-se nas asas as marcas do tempo, continuava bela e graciosa, o que perdera da frescura da juventude, ganhara em evolução de voo e experiência de céu, mas continuava a ser a minha gaivota, minha sem que tivesse a sua posse, minha porque só eu realmente compreendia o seu voo e as cores com que pintava a existência.

Neste mar interior, tecido de sonho e realidade, onde o passado e o futuro se tocam no fundo da espiral do presente, a minha gaivota encontrou tudo aquilo que julgava perdido e sempre fora seu.

Aqui, longe do mar que a apertava, ela reencontrou-se, reaprendeu a luz e o voo, os azuis e os violetas, a pureza do branco o fogo dos laranjas e os reflexos de verde.

Aqui longe do Tejo poluído, tal como eu, a minha gaivota fez o regresso a si própria, o regresso à sua pureza...

O regresso ao infinito.


Abrantes, 22 de Maio de 2002
Eduardo Ramos de Morais

A ÂNCORA


Há imagens que ficam tão presentes na nossa memória que as comparo ao largo de uma cidade, onde habitualmente se coloca uma estátua, como memorial de uma figura ou de um acontecimento.

Na praça do meu imaginário, existe ao centro uma âncora gigantesca, memória de uma infância feliz que recordo, com um sorriso aberto nos lábios e uma lágrima a correr pela face.

Tinha então quatro anos e, como nos anos anteriores quando chegava o mês de Junho, fixávamos residência na Trafaria.

Naqueles tempos, a palavra poluição ainda não existia nos dicionários da beira do rio e as águas do estuário do Tejo eram azuis, transparentes e, tirando um dia ou outro de nortada, calmas e quase sem ondulação.

A ponte não passava de um sonho futurista, o rio era a única via de comunicação com Lisboa e, nesse tempo a Trafaria já tinha o seu pequeno porto fluvial, de onde partiam e chegavam aquelas cascas de noz com nomes parecidos com os dos barcos de pesca que lhes deram origem: “Sempre Fixe”, “Favorito”, “Alcântara”... Nomes simples como os nomes dos seus timoneiros, homens que tinham por radar a alma e por GPS a experiência e a coragem: “mestre Mário”, “mestre Zé”, mestre Zé Boia etc.

Era neste ambiente de aldeia de pescadores, gente temperada pelo mar e por uma vida dura, que eu passava o Verão da minha infância.

Como acontecia com todas as famílias de veraneantes, as mulheres e as crianças ficavam a banhos e os homens madrugavam para apanhar o barco para Lisboa rumo aos seus empregos.

De manhã, praia até ao meio-dia, depois de almoço uma sesta no pinhal e, passada a “hora do calor”, regressava-se à praia.

Era neste último período do dia que eu contava os segundos e olhava para o pontão, esperando ansiosamente que o barco me trouxesse o meu pai. Depois, quando o barco chegava, arregalava os olhos para conseguir distingui-lo no meio das pessoas que se dirigiam para a praia, para terminar numa apoteose comigo a correr para aqueles braços abertos.

Valia a pena aquela espera, para poder compartilhar com o meu pai o último banho do dia e mostrar as minhas novas habilidades aquáticas.

Mas o melhor era quando ele ficava de férias, tê-lo o dia inteiro só para mim, para passear, nadar e, sobretudo para inundá-lo com torrentes de perguntas, porquês tão grandes que só a infinita paciência dele conseguia superá-los em dimensão.

Havia também aqueles passeios à “Cova do Vapor”, local místico em que o Tejo encontrava o mar, um areal a perder de vista com um murmurejar característico do mar e um aroma de maresia de que, infelizmente, apenas resta a recordação.

Foi aqui que a encontrei, ao longe, no meio do areal, parecia uma cauda de baleia.

Sem pensar, corri à desfilada nas minhas perninhas de criança e, ainda ofegante, constatei que se tratava de uma âncora, enorme, do tamanho de um homem, especada na areia a uns 100 metros da água.

Era uma daquelas âncoras que eu via penduradas nas proas dos grandes navios mas, ali semi enterrada na areia, aos meus olhos de criança parecia ainda maior.

A minha cabeça fervilhava: como teriam levado para ali uma coisa tão grande, quem o teria feito, onde estaria o navio a que pertencia... Quem, como e porquê?

Aquela âncora teria, quem sabe, impedido o naufrágio de um qualquer navio, em mar revolto...

Durante muitos anos, aquela âncora gigantesca permaneceu um mistério, aquela forma negra no meio do areal, acompanhou-me sempre ao longo da vida.

Hoje, na Praça do meu imaginário existe uma âncora gigantesca, com um braço enterrado e o outro apontando para o céu, um símbolo de tenacidade, integridade e honestidade.

Como na maioria dos monumentos, junto à base existe uma inscrição:

Pela força do teu exemplo e por teres sido a âncora da minha vida, obrigado meu pai.


Abrantes, 30 de Setembro de 2001
Eduardo Ramos de Morais

SHOW MOST GO ON


No reprodutor de “CD” a voz do Fredie cantava: “Quem quer viver para sempre” e eu traduzia as palavras, já que a alma da canção tu percebias profundamente.

“Não há tempo para nós, não há hipótese para nós”.

“Quem consegue amar para sempre ?”

“Quem quer viver para sempre ? “

Depois outro tema: “O espectáculo tem de continuar”

“Lá fora extravaso a imagem da alegria, mas cá dentro o meu coração está feito em bocados, mas o espectáculo tem de continuar”.

Foram os últimos momentos que compartilhámos, para além das palavras, para além do tempo, para além do espaço, mal sabia eu que tinhas decidido por termo a um drama que te atormentava e resolveras voar rumo a um infinito que te esperava.

O Fredie já tinha partido nessa altura, mas a voz permanecia teimosamente a dizer que era absolutamente necessário que o espectáculo continuasse.

De repente senti-me nu e só num palco que me apertava com uma solidão gelada e cinzenta.

Mas tu sabias que ias partir em breve e ias deixar um vácuo difícil de preencher, um silêncio negro de palavras que não mais iria compartilhar com ninguém.

Saíste de cena por opção de acabar um melodrama feito de incompreensão e eu fiquei por aqui num monólogo patético, porque o espectáculo tinha de continuar, mesmo que no fim ninguém estivesse lá para aplaudir.

Sei agora que “para sempre” é demasiado tempo, e esta necessidade de que o espectáculo continue, vai cansando, porque nem sempre se pode representar uma peça que não deveria ser esta, com um final que não deveria ser este e, então, apetece fazer cair o pano em plena cena e gritar:
- Que se dane o espectáculo, porque eu não quero que continue, estou farto, entendem ?

Tu tiveste a coragem de não querer viver para sempre e deixar uma representação que detestavas.

Um dia talvez nos voltemos a encontrar, lá onde o Fredie nos vai dizendo que “deve haver um Céu para toda a gente”, lá onde se pode viver para sempre num espectáculo diferente e que vale a pena continuar.


Abrantes, 28 de Novembro de 2003
Eduardo Ramos de Morais

A COVINHA NA AREIA


Aqui existia uma bela vila de pescadores, com casas baixas, pacata e rude como a sua gente.

Gente sofrida, leal e orgulhosa, altaneira como as proas dos barcos com que sulcavam o mar em busca do peixe, seu principal ganha-pão.

Nesse tempo a Costa da Caparica era a Praia do Sol, dunas altas que em declive, primeiro abrupto, depois suave, davam lugar a um imenso areal que emoldurava aquele festival de azul em que o mar e o céu se faziam perder de vista no horizonte.

Hoje parece que o areal foi diminuindo de extensão à medida que aumentava o número de pessoas que o iam pisando, como se cada um fosse gastando um pouco de praia em cada visita.

Mais uma vez o homem interagiu com o que não conhecia, dragou areias na foz do Tejo, as correntes modificaram-se e, qual castelo de areia, a duna desmoronou-se a praia desapareceu e agora há uma muralha de pedregulhos a segurar o mar.

Mais uma vez o que era lindo passou a ser artificial, tal como a vila que é agora um bairro dormitório, uma floresta de betão.

Como dizia o saudoso Mestre Pintor Manuel Lima: “Este País é tão maravilhoso e tão especial que é uma pena ser habitado”.

Mas em 1956 eu tinha quatro anos, estava em perfeita harmonia com aquela paisagem que me rodeava e me fazia sentir entre o grão de areia e o infinito.

E depois aquela imaginação que voava tão alto e tão longe, aquele sonhar tão profundo que era quase realidade.

Naquele dia abri uma pequena cova na areia, a alguns metros do mar, depois com o meu balde comecei a trazer agua para aquele pequeno buraco.

A cena foi-se repetindo, balde a balde, minuto a minuto, horas a fio.

Na minha mente de criança eu acreditava que se não desistisse conseguiria pôr o mar todo dentro da minha cova.

A minha mãe bem me tentou explicar que o mar era tão grande e a minha cova tão pequena que nunca conseguiria, por muitos anos que vivesse e muitos baldes que transportasse, pôr o mar todo ali dentro.

Mas na minha ideia, se eu conseguisse passar o mar para o meu buraco, poderia caminhar pela areia até ao céu azul que lá ao longe parecia tocar no mar.

Hoje estou aqui a olhar o horizonte, estou aqui em cima desta muralha batida pelo mar, mas estou a tentar localizar onde era a tal covinha para onde eu queria transportar os oceanos.

Hoje sei que a minha covinha não podia receber tanto mar, também percebi que o meu cérebro é pequeno demais para abarcar o infinito, mas ao longo dos caminhos da minha memória, vai sempre existir uma criança que teimosamente vai continuar a ir encher de mar azul a covinha da minha imaginação.


Abrantes, 6 de Fevereiro de 2006
Eduardo Ramos de Morais

2005/01/20

O MESTRE DE JUDO


Á medida que o progresso se instala, o homem tende a assemelhar-se às máquinas que inventa e utiliza.

Se não está no manual de computador, se o chefe não diz, se o vizinho não faz, se o patrão não pensa assim, então não interessa, então não é para aplicar e, muito menos para questionar ou, pensar em desenvolver.

Cada vez se pensa menos, cada vez se olha mais para o próprio umbigo e se procura a sobrevivência individual: desde que não nos toque a nós, o problema é apenas do próximo que, de preferência, se deve afastar qual leproso, o mais rápido possível.

Se Galileu vivesse no nosso século, não sei se se atreveria a imaginar que a Terra era redonda, dado o peso da economia de mercado e dos meios de comunicação por ela controlados.

Vivemos surdos e, principalmente mudos... raciocinamos mas não nos atrevemos a expressar as ideias em voz alta, se não se encontrarem de acordo com o catálogo de regras e regulamentos. Nos dias de hoje, não se ouvirá alguém gritar: “O Rei vai Nu”.

Seguramente, Jesus Cristo seria crucificado antes de ter oportunidade de pregar os seus ideais, e ao seu lado estariam o "bom" humanista e o "mau" sindicalista.

Se ao menos tivéssemos a coragem e a tenacidade do meu amigo Fernando.

Em pequeno, como sequela do sarampo, o Fernando ficou com uma surdez profunda que o atirou para um mundo, destinado a ser de silêncio e de incompreensão, onde tudo o que é diferente está, por defeito, condenado a ser votado ao ostracismo.

Mas se Cedo a Natureza o privou de conhecer o chilrear dos pássaros, o sussurrar dos regatos e as tonalidades mágicas da música, também o dotou de um grande coração e de uma grande capacidade de lutar, de competir, de aprender e, até, de ensinar.

O Judo foi a sua forma de ouvir e de falar, ganhou o seu cinto negro e o grau de Mestre, com a persistência de quem não se conforma e sabe que se não reagir, não poderá contar com a ajuda de ninguém

Longas são as conversas que temos partilhado, em que a expressão, o olhar, o gesto e o sentimento, substituem a eloquência das palavras, por vezes, tão difíceis de pronunciar e, mais ainda, de compreender.

Com ele aprendi que a vitória ou a derrota estão na mente e no coração, na convicção com que partimos para vencer, ou no medo de agir que nos condena a perder.

Também me ensinou que a arma mais eficaz é a flexibilidade, aproveitar a força que se nos opõe de forma a que se torne proveitosa para nós.

E assim tem sido na vida, o meu amigo Fernando, mantendo-se de pé perante a adversidade, e, se necessário, sabendo cair bem para continuar a lutar.

Actualmente o Fernando nada ouve, nem a sua própria voz consegue escutar, foi forçado a reconstruir a sua linguagem e, não é raro vê-lo a falar para audiências que atingem as centenas de pessoas., porque ele consegue ouvir a voz do coração e falar para além das palavras.

O mundo que nos rodeia é cada vez mais de surdos, porque as pessoas estão a perder a capacidade de ouvir os outros.

O mundo que nos rodeia é, cada vez mais de mudos, porque as pessoas têm medo de expressar aquilo que são.

Que pena nem todos terem a capacidade de ouvir, falar e lutar, como o meu amigo Fernando...


Abrantes, 15 de Novembro de 2002
Eduardo Ramos de Morais
Posted by Hello

2005/01/19

A ALMA GÉMEA


Olhava para ti e via a minha imagem de outras eras, reflectida num espelho embaciado.

Ali estavam os meus jogos de palavras, as minhas peças de teatro, as ilusões da minha imaginação, as realidades etéreas do meu coração vagabundo.

O tempo dilatava-se em infinitas nuvens brancas recortadas no azul, mudando de forma, dimensão e consistência, ao sabor dos ventos caprichosos da minha imaginação.

O céu e o inferno, o amargo e o doce, a paz e o mal-estar fundiam-se numa sensação de prazer e tédio, de presente e passado, no desejo de um futuro que não tinha possibilidade de acontecer.

Estávamos ali, no fluir da palavra, na comunhão do pensamento, refreando o corpo e controlando as emoções e os impulsos que variavam entre amor e ódio, entre a raiva e o carinho, um quadro mesclado de cores frias e quentes que iam da harmonia total à completa ausência de cor, por entre brancos e cinzentos.

Estávamos ali, parados num tempo que era apenas uma invenção real das nossas mentes diluídas, como numa cena de drama ou comédia, escrita para dois personagens reais ou imaginários.

Estávamos ali, como quem quisesse viver a vida toda num dia ou numa hora, como se o amanhã nem sequer pudesse ter hipótese de existir.

Estávamos ali, espectadores do "outro eu" que ria e chorava do outro lado do espelho embaciado, como um sátiro a gozar perdidamente com o desfalecer de dois náufragos que nem sequer tinham uma praia à vista para sobreviver.

Estávamos ali precisamente no centro de nós olhando um Sul longínquo, com vontade de perder o Norte, e deixar correr o tempo numa decisão de ficar e partir.

Estávamos ali arrependidos do que não fizemos e com medo de começar uma guerra que provocaria danos irreparáveis no mundo que nos rodeava, por um capricho que forçosamente não iria durar muito.

Olhava para ti, via os meus olhos reflectidos na profundidade de um lago que começava no meu coração e acabava num infinito de luzes violetas e azuis, lá onde começa a liberdade de ser e estar.

Olhava para ti e via-me através dos teus olhos como ser incompleto a que me faltava eu e talvez um pouco de ti como um dia de Sol quente em pleno Outono.

Olhava para ti e via a razão porque os meus sonhos me tinham passado por entre os dedos com areia fina solta ao vento.

Estávamos ali fechados num pentágono defensivo, fechados em espirais de fumo e em pensamentos que voavam algures entre o mar interior e o céu em expansão.

Estávamos ali a olhar um horizonte irreal de verdes azuis mesclados com as brumas do tempo, com uma Senhora a chorar um filho que tinha morrido por todos nós e que não tínhamos sabido merecer.

Olhava para ti e via Rodolfo, cavaleiro Templário, a brandir a espada com o braço esquerdo e a ferir de morte Rui que lhe tinha tirado a vontade de existir ao matar sua mulher Inês.

Olhava para ti entre o aqui agora, o antes aqui e o infinito lá onde me quero elevar.

Estávamos ali enganados no espaço e no tempo, como as gaivotas que por ali voavam, longe do seu mundo real e do mar a que pertenciam.

Estávamos ali a representar o último acto de uma peça com duas personagens, um acto por escrever, as frases feitas de improviso a conduzir o texto para vários desfechos possíveis, com lágrimas e risos, mas conscientes que este sonho teria sempre um despertar gelado para uma realidade chamada Impossível.

Olhava para ti e via tudo o que queria ver e teria preferido ignorar, afinal a alma gémea estava ali e eu amava-a como a mim mesmo e, ironicamente, detestava-a como a mim mesmo.

Olhava para ti, como vício incontrolável e ressacava de privação quando não estavas mas, simultaneamente, desejava que não viesses e, sobretudo, que não demorasses.

Olhava para ti, estávamos ali a fechar a espiral de um voo que durou apenas o tempo de uma flor, uma rosa cor de laranja, sem espinhos, rodeada de verde, salpicada de branco, a flor esperada que vai durar para além da realidade, para além do sonho, para além de mim.


Abrantes, 8 de Novembro de 2003
Eduardo Ramos de Morais
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A TORRE


Havia algo que me atraía para o Abismo, alguma coisa me impelia a saltar como desejo de morte e anseio de vida, os sentimentos empastelados de partida e de chegada.

Sentia nas costas o lugar das asas de outros tempos, os voos de irrealidade, as imagens de um universo por descobrir e, ao mesmo tempo, tão conhecido.

Mas agora estava preso aqui por amarras pesadas, resistentes aos ventos que me queriam fazer navegar rumo ao caos e percorrer caminhos que me estavam vedados, rotas de naufrágio destinadas ao fracasso.

Não, eu agora era apenas eu, o anjo ficara lá, com as suas asas, a sua espada flamejante na mão, uma rosa intemporal desenhada no peito e uma Luz a assinalar o seu ombro esquerdo.

Eu agora era apenas isto, com os cabelos desgrenhados pelo vento, a alma em chaga e um desejo de infinito que teimava em me atrair para o abismo e para outros destinos.

Sabia que a torre de menagem, aquela torre pentagonal protegia o meu dia, chamava-me à razão e reunia, como Isis, os pedaços de mim quando me destroçava em voos demasiado violentos.

A minha Torre, sempre presente, sempre ali, como consciência, como refúgio, como raiz.

Se ali não estivesse eu não saberia como viver, mas encerrava enigmas que mal compreendia e mal aflorava, eu não poderia viver sem a minha Torre, porque sem ela eu já teria saltado para o abismo.

A minha Torre era tão minha que ás vezes me esquecia que ali estava, mas simultaneamente era tão impenetrável como a dura pedra de que era feita.

E o abismo continuava ali a chamar-me, com uma voz de sereia, uma imagem de um outro eu e a parte que já tivera e me faltava.

O abismo chamava-me como se ainda tivesse as minhas asas e pudesse saltar incólume para um vórtice de tempo que não era o meu.

A aventura do abismo como sinal de liberdade, a segurança da Torre como símbolo de amor total e estabilidade.

E eu era agora apenas isto, sem asas sem espada, sem a rosa mística, apenas a Luz brilhava mortiça sobre o meu ombro esquerdo, à espera de ser merecida e alcançada.

Talvez o Céu já não se lembrasse de mim, tantos erros haveriam de ter tido alguma consequência, perdera as minhas asas, o meu sonho, a minha palavra e agora estava aqui, entre a Torre e o Abismo, entre a vida e a morte, entre o imaginário e o real, entre mim e eu.

Eu era agora apenas isto, estava retirado para um mar interior onde ainda vinham voar algumas gaivotas, para me recordar aquele lugar de asas e infinitos para onde o tempo me vai um dia levar.


Pinhal Novo, 4 de Abril de 2004
Eduardo Ramos de Morais
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2005/01/18

O ALBATROZ


Há já muito tempo que ali vivia, longe de tudo, naquela enseada deserta de areias douradas e rochas escarpadas.
Era um grande albatroz de larga envergadura e porte majestoso, feito para voos infindos entre mar e céu.
Tinha nas asas as marcas das viagens e no corpo as cicatrizes de incontáveis lutas e voos intrincados.
Tantas vezes venceu o mar, vitórias que recordava com uma ponta de orgulho, mas inúmeras foram também as derrotas em que quebrou as asas, destas nunca se envergonhou, foi assim que temperou o voo e aprendeu mais.
Sabia, sempre o soube, que o Céu era maior e mais alto e que o Sol, a Lua e as estrelas, marcavam rumos certos e seguros no seu destino.
No seu horizonte existiu sempre um turbilhão de luz e o objectivo de chegar, lá onde o azul do mar tocava o azul do céu, lá onde se delineavam estradas de luar, lá onde o Sol nascia em explosões de laranja e se punha em pinceladas de vermelho, mescladas de brancos e matizes de violetas. Uma Luz que estava sempre à espera de ser merecida e alcançada.
Em tempos remotos, existiam centenas como ele, na mesma rota, com a mesma forma de voar, com a mesma ânsia de aprender.
Agora estava só. É certo que por ali deambulavam bandos de aves, mas nenhuma da sua espécie, nenhuma voava como ele e, nem mesmo as gaivotas, compreendiam que era preciso voar à velocidade do pensamento no rumo do amor, não percebiam o porquê do Céu estar ali e ser maior, maior até que a solidão.
O Céu estava ali, mesmo que os cinzentos e negros o escondessem, o Céu estava, sempre ali.
Pacientemente tentou mostrar àquelas aves o que tinha aprendido:
As derrotas, as vitórias, a forma e o espírito de chegar, mais longe e mais alto e a importância de alcançar aquela Luz.
Foi considerado imaturo, sonhador e louco, somente um louco poderia pensar assim Porque, para aquelas aves, o importante era a subsistência assegurada e um ninho, mais ou menos, confortável. Afinal de contas o céu não estaria sempre lá? Então, para quê tentar alcançá-lo?
Desmoralizado, o albatroz ficou confortavelmente entorpecido e chegou a pensar se não seria realmente, melhor assim. Era verdade que o Sol nascia todos os dias e o Céu, mesmo que não olhasse para ele, estaria sempre ali. O mar, mal ou bem, assegurava um dia a dia satisfatório para o resto da sua vida. O Céu que fosse maior, o que é que isso importava?
Durante muito tempo voou por voar, rotineiramente, de uma forma vazia. Apenas, de quando em vez, ensaiava um pequeno "looping" ou uma "glissage" sem riscos e sem sustos, somente para exercitar as asas e o sonho.
Mas agora estava só, o Verão há muito que acabara, a Primavera era apenas uma recordação e o Outono ameaçava já a chegada de um duro Inverno.
Agora estava só, a olhar o Céu que teimava em ser maior, aquele Céu em que as nuvens da sua imaginação, tinham construído catedrais rendilhadas, de um gótico perfeito.
Agora estava só, a olhar o Céu à procura de si mesmo ou de um outro eu, igual ou semelhante na forma, no voo e no espírito.
Então na linha do horizonte, nesse infinito cenário de azul, descortinou uma silhueta de asas longas e pareceu-lhe ouvir o grito, para si inconfundível, do albatroz.
Era sem dúvida um dos seus, afinal não estava só e o Céu era, indubitavelmente, maior.
O coração do velho albatroz parecia que ia rebentar, os olhos do velho albatroz brilhavam lágrimas de alegria.
Mas o tempo tinha passado e deixara marcas, o velho albatroz elevou-se num voo digno dos seus tempos de juventude, rumo àquele grito que o chamava e àquela forma de voar apetecida.
Sabia que não lhe seria possível terminar aquela viagem, já não viveria o suficiente para isso, mas acompanhou, até onde foi lhe possível, o voo do sua alma gémea. Reviveu por instantes as suas lutas com o mar, contou-lhe todas as suas viagens, as esperanças e as desilusões, as vitórias e as derrotas e, acima de tudo, o seu desejo de alcançar a Luz e a Paz.
Depois, com um misto de nostalgia e felicidade regressou à sua enseada, olhou o Céu e agradeceu ter podido viver aquele momento.
Porque, como todo o albatroz sabe, o Céu é maior e está ali.

Ericeira, 28 de Outubro de 2000
Eduardo Ramos de Morais
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O BARCO ENCARNADO




Pertenço a esta espécie que se preocupa em rotular as coisas e, sobretudo, a traduzir em números e medidas o mundo que a rodeia, ao ponto de os algarismos tenderem a ser mais importantes que o alfabeto.

Por isso, tem sempre que haver um princípio, um meio e um fim, mesmo quando tentamos descrever o infinito, como escreveu o apóstolo S. João: "No princípio era a Palavra e a Palavra estava com Deus"...

Poderemos então depreender que o Pai, como infinito tem como essência a Palavra e não a dimensão.

Tudo isto para dizer que o meu lado sonhador teve um princípio:

No princípio havia uma lancha de fundo chato, encalhada na praia da minha infância, uma lancha pintada de azul celeste, com uma fina risca vermelha que partindo da popa, marcava uma linha de contraste a culminar naqueles olhos pintados à proa que a faziam parecer ter vida própria.

Como não tinha nome, apesar de todo aquele azul, passei a identificar aquele ser inanimado como o barco encarnado

Acreditem, ou não, aquela lancha sem sair do areal, viajou um milhão de milhas marítimas nos oceanos do meu sonho.

Recentemente estive no mesmo lugar, a praia já não existe e ao que me foi dado saber já ninguém se recorda do "barco encarnado", existe apenas um silo de cereais que comporta "n" toneladas de trigo e tem escrita a sigla "EPAC" que eu traduzo como: Estamos Perante uma Aberração Consentida.

Apesar de tudo, dei comigo a navegar no meu barco encarnado, saindo a barra, cercado de gaivotas e golfinhos, rumo ao infinito mais recôndito do meu imaginário.

No principio do meu sonho feito barco, era o infinito feito mar, o horizonte feito azul, a imaginação feita palavra, a tal Palavra que no princípio e no fim do infinito, continua a estar com Deus para alem do mensurável.


Abrantes 22 de Abril de 2001
Eduardo Ramos de Morais
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