2006/04/14
O GOLFINHO
Aquela manhã de Agosto de 1956, tinha nascido cinzenta e fria, como se o Inverno escolhesse aquele dia para visitar o Verão.
A Trafaria era nesses tempos uma praia de águas calmas e areias douradas, mais um daqueles Paraísos que o Homem se encarregou de perder. (desde sempre somos especialistas em perder paraísos).
No meio de todo aquele cinzento recortava-se o azul celeste da camisinha da criança que brincava à beira mar.
Trazia o mundo num pequeno balde e a vontade de o mover na pá que segurava na mão direita.
Perto da margem, num interminável bailado aquático, evoluía uma dezena de golfinhos, livres como o mar, felizes como o Céu.
De súbito o menino deu por eles e ficou parado a contemplar aqueles seres, para si enormes e maravilhosos tão parecidos com os peixes.
Então, um dos cetáceos aproximou-se mais da praia para ver mais de perto a criança que o chamava.
Naquela linguagem que só as crianças e os golfinhos entendem, naquela voz que está para além da palavra, o menino perguntou:
- Que peixe és tu ?
Pacientemente o golfinho explicou:
- Eu não sou peixe, respiro como tu, nasço como tu e, nos primeiros tempos de vida, alimentei-me como tu do leite da minha mãe.
Há muitos milhões de anos que a minha espécie regressou ao mar, o preço nem sequer foi elevado, perdemos a possibilidade de usar utensílios ou escrever a nossa história, em troca da liberdade de viver nestes infinitos azuis e de comunicar para além do som.
Não conhecemos as guerras porque o mar não tem fronteiras, nem cidades e muito menos casas.
Os caminhos marítimos para qualquer lugar não têm segredos para nós, estamos em harmonia com o todo universal e viver é, por si só, uma oração ao Céu.
Maravilhada a criança olhou para aqueles olhos doces que o fitavam e exclamou:
- Quando crescer quero ser golfinho !
Carinhosamente o golfinho retorquiu:
- Tu não poderás ser golfinho porque nasceste homem, mas poderás treinar o teu coração e a tua mente para seres puro e pacífico como nós, para conheceres a imensidão do firmamento e a profundidade dos oceanos.
Subitamente o golfinho afastou-se da margem, juntou-se aos seus e debandaram apressadamente.
Ao longe, alguém chamava a criança para aquele dia de sol que entretanto tinha despontado.
Hoje já não há golfinhos no Tejo, a praia da minha infância deu lugar a um imenso colosso de betão, as águas, antes azuis, apresentam agora a cor baça da poluição.
Sonho ou realidade aquele diálogo com o golfinho prevaleceu na mente daquele menino que hoje, no Outono da vida, continua a ficar extasiado com a imensidão do mar e, não poucas vezes, dá por si a viajar no coração do golfinho, aquele golfinho que ficou para sempre gravado nos caminhos da minha memória.
Abrantes, 22 de Fevereiro de 2001
Eduardo Ramos de Morais
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