2005/01/18

O ALBATROZ


Há já muito tempo que ali vivia, longe de tudo, naquela enseada deserta de areias douradas e rochas escarpadas.
Era um grande albatroz de larga envergadura e porte majestoso, feito para voos infindos entre mar e céu.
Tinha nas asas as marcas das viagens e no corpo as cicatrizes de incontáveis lutas e voos intrincados.
Tantas vezes venceu o mar, vitórias que recordava com uma ponta de orgulho, mas inúmeras foram também as derrotas em que quebrou as asas, destas nunca se envergonhou, foi assim que temperou o voo e aprendeu mais.
Sabia, sempre o soube, que o Céu era maior e mais alto e que o Sol, a Lua e as estrelas, marcavam rumos certos e seguros no seu destino.
No seu horizonte existiu sempre um turbilhão de luz e o objectivo de chegar, lá onde o azul do mar tocava o azul do céu, lá onde se delineavam estradas de luar, lá onde o Sol nascia em explosões de laranja e se punha em pinceladas de vermelho, mescladas de brancos e matizes de violetas. Uma Luz que estava sempre à espera de ser merecida e alcançada.
Em tempos remotos, existiam centenas como ele, na mesma rota, com a mesma forma de voar, com a mesma ânsia de aprender.
Agora estava só. É certo que por ali deambulavam bandos de aves, mas nenhuma da sua espécie, nenhuma voava como ele e, nem mesmo as gaivotas, compreendiam que era preciso voar à velocidade do pensamento no rumo do amor, não percebiam o porquê do Céu estar ali e ser maior, maior até que a solidão.
O Céu estava ali, mesmo que os cinzentos e negros o escondessem, o Céu estava, sempre ali.
Pacientemente tentou mostrar àquelas aves o que tinha aprendido:
As derrotas, as vitórias, a forma e o espírito de chegar, mais longe e mais alto e a importância de alcançar aquela Luz.
Foi considerado imaturo, sonhador e louco, somente um louco poderia pensar assim Porque, para aquelas aves, o importante era a subsistência assegurada e um ninho, mais ou menos, confortável. Afinal de contas o céu não estaria sempre lá? Então, para quê tentar alcançá-lo?
Desmoralizado, o albatroz ficou confortavelmente entorpecido e chegou a pensar se não seria realmente, melhor assim. Era verdade que o Sol nascia todos os dias e o Céu, mesmo que não olhasse para ele, estaria sempre ali. O mar, mal ou bem, assegurava um dia a dia satisfatório para o resto da sua vida. O Céu que fosse maior, o que é que isso importava?
Durante muito tempo voou por voar, rotineiramente, de uma forma vazia. Apenas, de quando em vez, ensaiava um pequeno "looping" ou uma "glissage" sem riscos e sem sustos, somente para exercitar as asas e o sonho.
Mas agora estava só, o Verão há muito que acabara, a Primavera era apenas uma recordação e o Outono ameaçava já a chegada de um duro Inverno.
Agora estava só, a olhar o Céu que teimava em ser maior, aquele Céu em que as nuvens da sua imaginação, tinham construído catedrais rendilhadas, de um gótico perfeito.
Agora estava só, a olhar o Céu à procura de si mesmo ou de um outro eu, igual ou semelhante na forma, no voo e no espírito.
Então na linha do horizonte, nesse infinito cenário de azul, descortinou uma silhueta de asas longas e pareceu-lhe ouvir o grito, para si inconfundível, do albatroz.
Era sem dúvida um dos seus, afinal não estava só e o Céu era, indubitavelmente, maior.
O coração do velho albatroz parecia que ia rebentar, os olhos do velho albatroz brilhavam lágrimas de alegria.
Mas o tempo tinha passado e deixara marcas, o velho albatroz elevou-se num voo digno dos seus tempos de juventude, rumo àquele grito que o chamava e àquela forma de voar apetecida.
Sabia que não lhe seria possível terminar aquela viagem, já não viveria o suficiente para isso, mas acompanhou, até onde foi lhe possível, o voo do sua alma gémea. Reviveu por instantes as suas lutas com o mar, contou-lhe todas as suas viagens, as esperanças e as desilusões, as vitórias e as derrotas e, acima de tudo, o seu desejo de alcançar a Luz e a Paz.
Depois, com um misto de nostalgia e felicidade regressou à sua enseada, olhou o Céu e agradeceu ter podido viver aquele momento.
Porque, como todo o albatroz sabe, o Céu é maior e está ali.

Ericeira, 28 de Outubro de 2000
Eduardo Ramos de Morais
Posted by Hello

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