2005/01/20

O MESTRE DE JUDO


Á medida que o progresso se instala, o homem tende a assemelhar-se às máquinas que inventa e utiliza.

Se não está no manual de computador, se o chefe não diz, se o vizinho não faz, se o patrão não pensa assim, então não interessa, então não é para aplicar e, muito menos para questionar ou, pensar em desenvolver.

Cada vez se pensa menos, cada vez se olha mais para o próprio umbigo e se procura a sobrevivência individual: desde que não nos toque a nós, o problema é apenas do próximo que, de preferência, se deve afastar qual leproso, o mais rápido possível.

Se Galileu vivesse no nosso século, não sei se se atreveria a imaginar que a Terra era redonda, dado o peso da economia de mercado e dos meios de comunicação por ela controlados.

Vivemos surdos e, principalmente mudos... raciocinamos mas não nos atrevemos a expressar as ideias em voz alta, se não se encontrarem de acordo com o catálogo de regras e regulamentos. Nos dias de hoje, não se ouvirá alguém gritar: “O Rei vai Nu”.

Seguramente, Jesus Cristo seria crucificado antes de ter oportunidade de pregar os seus ideais, e ao seu lado estariam o "bom" humanista e o "mau" sindicalista.

Se ao menos tivéssemos a coragem e a tenacidade do meu amigo Fernando.

Em pequeno, como sequela do sarampo, o Fernando ficou com uma surdez profunda que o atirou para um mundo, destinado a ser de silêncio e de incompreensão, onde tudo o que é diferente está, por defeito, condenado a ser votado ao ostracismo.

Mas se Cedo a Natureza o privou de conhecer o chilrear dos pássaros, o sussurrar dos regatos e as tonalidades mágicas da música, também o dotou de um grande coração e de uma grande capacidade de lutar, de competir, de aprender e, até, de ensinar.

O Judo foi a sua forma de ouvir e de falar, ganhou o seu cinto negro e o grau de Mestre, com a persistência de quem não se conforma e sabe que se não reagir, não poderá contar com a ajuda de ninguém

Longas são as conversas que temos partilhado, em que a expressão, o olhar, o gesto e o sentimento, substituem a eloquência das palavras, por vezes, tão difíceis de pronunciar e, mais ainda, de compreender.

Com ele aprendi que a vitória ou a derrota estão na mente e no coração, na convicção com que partimos para vencer, ou no medo de agir que nos condena a perder.

Também me ensinou que a arma mais eficaz é a flexibilidade, aproveitar a força que se nos opõe de forma a que se torne proveitosa para nós.

E assim tem sido na vida, o meu amigo Fernando, mantendo-se de pé perante a adversidade, e, se necessário, sabendo cair bem para continuar a lutar.

Actualmente o Fernando nada ouve, nem a sua própria voz consegue escutar, foi forçado a reconstruir a sua linguagem e, não é raro vê-lo a falar para audiências que atingem as centenas de pessoas., porque ele consegue ouvir a voz do coração e falar para além das palavras.

O mundo que nos rodeia é cada vez mais de surdos, porque as pessoas estão a perder a capacidade de ouvir os outros.

O mundo que nos rodeia é, cada vez mais de mudos, porque as pessoas têm medo de expressar aquilo que são.

Que pena nem todos terem a capacidade de ouvir, falar e lutar, como o meu amigo Fernando...


Abrantes, 15 de Novembro de 2002
Eduardo Ramos de Morais
Posted by Hello

1 comentário:

@Memorex disse...

Realmente isto é absolutamente fascinante! Deveras surpreendida e emoncionada com o teu relato de um amigo íntimo além de ser Surdo e praticante de Arte Macial.

Desde tenra criança sempre tive a exacta necessidade de me afirmar no mundo extremadamente competitivo onde os valores de solidariedade vai desaparecendo pouco a pouco e as pessoas só se lembram disso quando acontece uma castratofe natural, infelizmente é de pouca duração. Mas nada comparada por uma gigantesca luta pela integridade.

Também sou Surda, embora não me apelidasse de Surda pq tenho uma fábrica poderosa que ela própria me apelida de Ouvinte.
Afinal coincidências há muitas, só não acredito como nas circunstãncias que nos leva a ditar o momento.

P.S-» Tb pratico arte marcial, embora não seja o Judo

Bjs