2006/04/14

LANÇA FELIZ


Ela pertencera a uma das muitas florestas que existiram neste planeta e que num futuro próximo, serão apenas uma recordação fotográfica, se persistirmos em queimar o futuro.
Era uma daquelas árvores de grande porte, com séculos de existência, erguera-se em direcção a um Céu inatingível, ganhara raízes profundas e resistira a todos os caprichos da Natureza, como se ali sempre tivesse estado e ali fosse permanecer para sempre.
Mas um dia vieram buscá-la. Os machados, golpe a golpe foram minando a sua base até que o colosso se desmoronou no solo, separado das raízes e da terra onde crescera.
Nessa altura pensou que era o fim de tudo mas, curiosamente, apercebeu-se que algo de novo ia começar.
Sentiu que a separavam em peças de diversas formas e tamanhos e, no meio de clarões de dor, o voltavam a reunir segundo um projecto bem delineado.
Como num “puzzle” gigantesco, a árvore deu lugar a uma daquelas graciosas embarcações que até meados do século passado, deram vida ao Tejo com as suas pinturas vistosas e as suas velas enfunadas, as fragatas.
Quando ficou finalmente acabada, alguém escreveu nos dois lados da proa o nome:
“LANÇA FELIZ”
Assim foi baptizada aquela fragata:
LANÇA, para que navegasse rapidamente e com bons ventos.
FELIZ, para que as suas viagens chegassem sempre a bom porto.
Depois desceu o rio rumo ao estuário onde, a partir desse momento, se iria desenrolar o próximo estádio da sua vida.
Desceu o rio deixando para traz a floresta, aquela floresta onde vivera à beira do seu mar interior.
Desceu o rio relembrando com saudade o ruído dos regatos, o chilrear das Primaveras em que cada nascer do Sol, era uma explosão de vida e cor.
Desceu o rio com o vento nas velas, a lembrar o tempo em que o sussurro da brisa lhe agitava os ramos.
Então percebeu a sua imagem reflectida nas águas e orgulhou-se da bela embarcação em que se tinha transformado, livre, sem raízes, veloz e firme como uma Lança, Feliz como o amor e a liberdade.
Ao longo de décadas, muitas foram as suas viagens. Aprendeu o rio, conheceu o mar, as ânsias das partidas e as saudades dos regressos.
O sal do mar e o azul do Céu já faziam parte de si, as gaivotas seguiam-na sorrindo voos à volta das suas velas.
O tempo passou e, de novo, alguma coisa estava a mudar, o Tejo estava mais poluído, os navios eram outros, cada vez se viam menos velas a sulcar as ondas, cada vez eram menos as fragatas com que se cruzava.
De resto, a maioria dos dias eram passados sem sair da doca e já há muito que não lhe retocavam a pintura, nem lhe cuidavam das velas.
Os sinais do tempo começaram a notar-se, já não era a bela embarcação de outras eras e, o pior de tudo, era a solidão que vinha tornar mais amarga, aquela sensação de estar a envelhecer.
Agora estava a navegar de novo e conhecia aquela rota, lembrava-se, fora a sua primeira viagem. Mas agora subia o rio, contra a corrente que a puxava para o mar, para aquele mar azul que na sua memória, ia perdendo a forma e os contornos, para aquele mar azul que se ia esfumando, até ser apenas uma mancha matizada de cinzento.
Subia o rio rumo à sua floresta e ao seu mar interior, mas sabia que jamais voltaria a ter raízes e nunca mais voltaria a ser árvore.
Finalmente a viagem terminou, deixaram-na encalhada na margem, junto a um salgueiro, só, entregue a si própria, à mercê do tempo e à espera do fim.
Já não barco, nunca mais árvore, as suas cavernas partiram-se e as velas já tinham desaparecido em farrapos. Pouco restava da “Lança Feliz”, outrora uma das mais lindas fragatas do Tejo.
Anos volvidos, uma criança brinca numa praia junto à foz do rio. Achou um bocado de madeira carcomida pelo tempo, com o seu canivete dá-lhe uma forma que lembra vagamente um barco, ao centro crava-lhe um pau, como se fosse um mastro, prende-lhe o seu lenço dobrado em triângulo.
E tudo começa de novo, na sua imaginação de criança há mil viagens, mil partidas, mil chegadas, a luz do Sol e o azul do mar e a aventura de poder sonhar.
Enquanto empurra aquele pedaço de madeira pela água calma da beira-mar, imagina um barco de verdade, veloz como o pensamento, belo como a liberdade e dá-lhe um nome
“LANÇA FELIZ”


Abrantes, 14 de Novembro de 2000
Eduardo Ramos de Morais

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