2006/04/14
A MINHA GAIVOTA
Toda a minha infância e juventude tiveram o estuário do Tejo como cenário, vivi numa colina de Lisboa, de onde abarcava todo o seu esplendor e passei largas temporadas de Verão junto à sua foz.
Muitas águas correram por aqui vindas de longe, buscando o mar e o infinito branco das nuvens, para voltarem aqui, onde obrigatoriamente tenho de voltar para me encontrar com este Tejo em que me transbordo e desaguo nos sonhos que teimo em navegar.
Aqui comecei tantas viagens nos navios que via sair barra fora, para regressar ao pôr-do-sol no voo tranquilo da gaivota, aquela gaivota que sempre me acompanhou obsessivamente ao longo da vida, como símbolo de pureza, mistério, amor e liberdade.
Foi aqui que a conheci, posso dizer que era a minha gaivota, minha sem ter a sua posse, minha porque sempre tive a pretensão de ser o único a compreender o seu voo, quando, ao pôr-do-sol, se recortava no azul do infinito e de manhã me trazia pinceladas de laranja em fundos esfumados de brancos anilados de violeta.
Hoje, o estuário do Tejo parece ter envelhecido comigo, ainda lhe restam a beleza e o vigor, mas notam-se já os sintomas da doença que, um dia num futuro previsível o acabará por matar.
Ainda por aqui evoluem gaivotas, mas nenhuma se parece com a minha. A minha gaivota era branca e pura, voava com a leveza do pensamento e com a liberdade do amor.
Hoje, volvido meio século, continuo à beira do Tejo, estou mais longe do mar, mais perto de mim, mais puro como este Tejo que corre sem pressas perto da cidade de Abrantes.
Posso dizer que por aqui estou de regresso às origens, de regresso a mim mesmo ou de regresso à inocência, porque aqui existe um mar interior em que me banho e purifico.
Há por aqui lugares cuja atmosfera nos faz sentir mais perto de nós próprios e mais perto do céu, verdadeiros templos de Natureza onde os azuis se confundem em cinzentos, os amarelos se esfumam de branco e fica ao nosso critério decidir o que é real e onde começa o limiar do sonho.
Lugares como Dornes, terra de Templários que aqui deixaram os seus vestígios e a sua mística e onde, tantos anos passados, voltei a encontrar a minha gaivota.
Tentava descobrir no horizonte, onde acabava o verde das árvores e o azul do céu e onde começavam as suas imagens reflectidas (em Dornes a ilusão funde-se com a realidade) quando de repente, recortada neste cenário me apercebo da sua silhueta inconfundível de gaivota.
À medida que se ia aproximando fui reconhecendo o seu voo, livre como o amor, leve como o pensamento, era sem dúvida a minha gaivota, aquela que tantas vezes me levou a voar no seu coração.
Apercebiam-se nas asas as marcas do tempo, continuava bela e graciosa, o que perdera da frescura da juventude, ganhara em evolução de voo e experiência de céu, mas continuava a ser a minha gaivota, minha sem que tivesse a sua posse, minha porque só eu realmente compreendia o seu voo e as cores com que pintava a existência.
Neste mar interior, tecido de sonho e realidade, onde o passado e o futuro se tocam no fundo da espiral do presente, a minha gaivota encontrou tudo aquilo que julgava perdido e sempre fora seu.
Aqui, longe do mar que a apertava, ela reencontrou-se, reaprendeu a luz e o voo, os azuis e os violetas, a pureza do branco o fogo dos laranjas e os reflexos de verde.
Aqui longe do Tejo poluído, tal como eu, a minha gaivota fez o regresso a si própria, o regresso à sua pureza...
O regresso ao infinito.
Abrantes, 22 de Maio de 2002
Eduardo Ramos de Morais
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