2006/04/14

A ÂNCORA


Há imagens que ficam tão presentes na nossa memória que as comparo ao largo de uma cidade, onde habitualmente se coloca uma estátua, como memorial de uma figura ou de um acontecimento.

Na praça do meu imaginário, existe ao centro uma âncora gigantesca, memória de uma infância feliz que recordo, com um sorriso aberto nos lábios e uma lágrima a correr pela face.

Tinha então quatro anos e, como nos anos anteriores quando chegava o mês de Junho, fixávamos residência na Trafaria.

Naqueles tempos, a palavra poluição ainda não existia nos dicionários da beira do rio e as águas do estuário do Tejo eram azuis, transparentes e, tirando um dia ou outro de nortada, calmas e quase sem ondulação.

A ponte não passava de um sonho futurista, o rio era a única via de comunicação com Lisboa e, nesse tempo a Trafaria já tinha o seu pequeno porto fluvial, de onde partiam e chegavam aquelas cascas de noz com nomes parecidos com os dos barcos de pesca que lhes deram origem: “Sempre Fixe”, “Favorito”, “Alcântara”... Nomes simples como os nomes dos seus timoneiros, homens que tinham por radar a alma e por GPS a experiência e a coragem: “mestre Mário”, “mestre Zé”, mestre Zé Boia etc.

Era neste ambiente de aldeia de pescadores, gente temperada pelo mar e por uma vida dura, que eu passava o Verão da minha infância.

Como acontecia com todas as famílias de veraneantes, as mulheres e as crianças ficavam a banhos e os homens madrugavam para apanhar o barco para Lisboa rumo aos seus empregos.

De manhã, praia até ao meio-dia, depois de almoço uma sesta no pinhal e, passada a “hora do calor”, regressava-se à praia.

Era neste último período do dia que eu contava os segundos e olhava para o pontão, esperando ansiosamente que o barco me trouxesse o meu pai. Depois, quando o barco chegava, arregalava os olhos para conseguir distingui-lo no meio das pessoas que se dirigiam para a praia, para terminar numa apoteose comigo a correr para aqueles braços abertos.

Valia a pena aquela espera, para poder compartilhar com o meu pai o último banho do dia e mostrar as minhas novas habilidades aquáticas.

Mas o melhor era quando ele ficava de férias, tê-lo o dia inteiro só para mim, para passear, nadar e, sobretudo para inundá-lo com torrentes de perguntas, porquês tão grandes que só a infinita paciência dele conseguia superá-los em dimensão.

Havia também aqueles passeios à “Cova do Vapor”, local místico em que o Tejo encontrava o mar, um areal a perder de vista com um murmurejar característico do mar e um aroma de maresia de que, infelizmente, apenas resta a recordação.

Foi aqui que a encontrei, ao longe, no meio do areal, parecia uma cauda de baleia.

Sem pensar, corri à desfilada nas minhas perninhas de criança e, ainda ofegante, constatei que se tratava de uma âncora, enorme, do tamanho de um homem, especada na areia a uns 100 metros da água.

Era uma daquelas âncoras que eu via penduradas nas proas dos grandes navios mas, ali semi enterrada na areia, aos meus olhos de criança parecia ainda maior.

A minha cabeça fervilhava: como teriam levado para ali uma coisa tão grande, quem o teria feito, onde estaria o navio a que pertencia... Quem, como e porquê?

Aquela âncora teria, quem sabe, impedido o naufrágio de um qualquer navio, em mar revolto...

Durante muitos anos, aquela âncora gigantesca permaneceu um mistério, aquela forma negra no meio do areal, acompanhou-me sempre ao longo da vida.

Hoje, na Praça do meu imaginário existe uma âncora gigantesca, com um braço enterrado e o outro apontando para o céu, um símbolo de tenacidade, integridade e honestidade.

Como na maioria dos monumentos, junto à base existe uma inscrição:

Pela força do teu exemplo e por teres sido a âncora da minha vida, obrigado meu pai.


Abrantes, 30 de Setembro de 2001
Eduardo Ramos de Morais

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